O Radioamadorismo, desde o seu início, tem como uma de suas bases o respeito à legislação. No começo, os primeiros radioamadores operavam ainda sem regras bem definidas quanto à sua operação, mas uma vez que os governos regulamentavam as atividades, imediatamente todos deveriam segui-las à risca.
A partir daí, e especialmente hoje em dia, ninguém que tente operar uma estação e que esteja fora dos limites legais estabelecidos em seu país conseguirá sucesso em seu intento. Uma vez que a comunidade radioamadora identifique uma ilegalidade, prontamente a estação irregular será “blacklisted”, ou seja, será BANIDA da comunidade.
Porém, além do apego irrestrito à legislação, o Radioamadorismo também tem outro código, muito mais rigoroso, que é a ÉTICA. Em poucas palavras, a ética é aquilo que refreia nossas intenções ainda que a Lei permita que as façamos.
Um bom exemplo está no uso das frequências de rádio. Dentro de nossas faixas e respeitados os limites de potência e modos permitidos, qualquer radioamador pode fazer uso de qualquer frequência permitida e ninguém é “dono” de nenhuma. Isso significa que ninguém pode exigir ou tomar posse de determinada frequência. A legislação brasileira só admite uma exceção, e por motivos óbvios: quando houver alguém operando em situação de emergência. Neste caso, os demais ocupantes de determinada frequência são obrigados a dar espaço:
Art. 42. A todo tempo e em todas as faixas de freqüências o operador da estação deve dar prioridade a estações efetuando comunicações de emergência. Fonte: Res. 449/2006 – ANATEL
Se dois ou mais radioamadores desejam fazer uso de uma mesma frequência, a ética operacional exige que aquele que chegou depois deve se abster de utilizar a mesma frequência que esteja em uso por outro radioamador e procurar uma outra. Observe: quem chegou depois tem o mesmo direito legal de fazer uso da frequência; não há nada na legislação que obrigue um a ceder para o outro. Porém, há regras que não estão escritas na Lei e as encontramos na ÉTICA operacional: “a frequência é de quem chegar primeiro!”
Parece óbvio demais e até redundante relembrar isso, mas é necessário. Muitos hoje em dia parecem achar que os radioamadores obedecem “apenas” à Legislação, esquecendo a ética, ainda que TODO radioamador no Brasil seja obrigado a provar que conhece tanto a legislação quanto a ética/técnica operacional antes de receber a autorização para apertar o PTT de um rádio.
Uma “rede” via Zello
Recentemente soubemos que está sendo criada a nível nacional uma “Rede” que pretende conectar, por meio do aplicativo Zello, ou seja, via internet, links (tecnicamente estações IVG, ou seja, que permitem tráfego de voz bidirecional para a Internet por meio de conexões/aplicativos VoIP) para alegadamente interligar todo o país e permitir que radioamadores possam interagir entre si mesmo estando geograficamente distantes e, portanto, inacessíveis via rádio (ou pelo menos, nas faixas de 2 metros e acima – VHF/UHF).
Seria uma iniciativa interessante e perfeitamente legal, já que as estações IVG estão regulamentadas no Brasil por meio da Res. 697/2018 e Ato 9106/2018 que definiram frequências específicas, entre 145,000 e 145,200 MHz (chamados “canais”). Além disso, mesmo se assemelhando a repetidoras, de fato um IVG não se enquadra como uma: dentre outros motivos, opera em simplex, ou seja, em modo “half-duplex”, ao contrário de uma estação repetidora que opera em full-duplex, transmitindo e recebendo simultaneamente em duas frequências diferentes.
Porém, na prática, está começando a haver um conflito que pode ter proporções desastrosas.
1. Utilização de “LARANJAS”
Primeiro, por desconhecimento a respeito do que é uma repetidora e do que é um IVG do ponto de vista legal, alguns estão licenciando estações repetidoras desnecessariamente para, supostamente, estarem “cobertos” em caso de fiscalização da ANATEL. Pior, muitos, por serem radioamadores classe C e não poderem licenciar estações repetidoras, estão procurando “laranjas”, radioamadores classe A, para que estes possam licenciar estas estações, prática esta vedada por caracterizar falsidade ideológica e até fraude, já que no licenciamento o requerente envia comprovante de residência para provar que de fato reside no local aonde quer licenciar a estação repetidora.
Porém, há também a fraude em sentido inverso, que é a cooptação de colegas classe C para que estes forneçam um endereço para que o idealizador da tal rede licencie uma estação repetidora e a instale em suas residências.
Já neste ponto identificamos dois problemas, um causado por desconhecimento e outro mais grave, caracterizando fraude processual.
2. Repetidoras licenciadas com frequências trocadas
Em segundo lugar, as licenças obtidas por membros da tal “Rede” estão sendo emitidas com um erro flagrante, claríssimo e muito grave: as frequências de entrada e de saída licenciadas estão em desacordo com aquelas definidas na legislação!
Uma explicação: frequência de entrada é a frequência em que os radioamadores TRANSMITEM para a repetidora quando apertam o botão de PTT de seus rádios. Já a frequência de saída é a frequência oposta, isto é, aquela em que a repetidora transmite e os radioamadores RECEBEM em seus rádios. Não pode haver confusão entre essas duas frequências, pois caso isso aconteça, a repetidora ficará inacessível. Estas frequências foram estabelecidas por convenção internacional e valem para todo o mundo ou pelo menos para uma das três regiões que compõem o planeta, segundo a União Internacional de Telecomunicações, órgão máximo do setor a nível mundial.
Frequências trocadas… E daí?
Mas qual o problema em ter frequências trocadas, alguém poderia perguntar. Será que não estaríamos fazendo uma tempestade num copo d’água?
De forma alguma. Primeiro, no mesmo Ato 9106/2018 a ANATEL definiu de maneira inequívoca quais frequências podem ser usadas como entrada e saída de repetidoras:
B.3.14. Faixa dos 2 metros
Frequência (MHz) | Aplicações e observações | |
Inicial | Final | |
144,600 | 144,900 | Entradas de Repetidoras (saídas +600 kHz) (exclusivo) |
145,200 | 145,500 | Saídas de Repetidoras (entradas -600 kHz) (exclusivo) |
146,000 | 146,390 | Entradas de Repetidoras (saídas +600 kHz) (exclusivo) |
146,600 | 146,990 | Saídas de Repetidoras (entradas -600 kHz) (exclusivo) |
146,990 | 147,400 | Saídas de Repetidoras (entradas +600 kHz) (exclusivo) |
147,590 | 148,000 | Entradas de Repetidoras (saídas -600 kHz) (exclusivo) |
Notem acima a palavra “EXCLUSIVO” em destaque. Mais claro, impossível. Para cada faixa, a destinação é EXCLUSIVA para entrada OU saída.
ANATEL induzida ao erro
Para licenciar as estações repetidoras desta forma, com as frequências trocadas, o idealizador da tal “Rede” se vale de um trecho de um artigo que se encontra no Ato 9106/2018 da ANATEL, que diz:
10. Estações IVG deverão, além de operar somente nas subfaixas especificadas no Plano de Bandas para estas aplicações, seguir as canalizações de frequências do Anexo D. É permitida operação IVG em frequências de repetidoras do Anexo C para conectar a respectiva repetidora na rede.(Fonte: Ato 9106/2018 ANATEL)
De fato, uma estação operando um IVG pode utilizar as frequências destinadas às repetidoras. Porém, o IVG em si não é uma repetidora! Se o fosse, ele deveria utilizar exclusivamente as frequências destinadas a elas! O que o artigo acima diz é que existe uma única exceção à regra mencionada no trecho inicial – que estações IVG devem obedecer à canalização específica e operar somente nos segmentos autorizados – e esta única exceção é que estações IVG PODEM operar nas frequências das repetidoras. Porém, sem jamais se confundirem como uma!
Assim, ao apresentar como justificativa este artigo para obterem o licenciamento de estações repetidoras para supostamente estarem “cobertos” pela legislação, os idealizadores da tal “Rede” estão na verdade induzindo a própria ANATEL a cometer dois erros:
1. Licenciando estações repetidoras para uso como IVG sem necessidade
2. Licenciando estações repetidoras com frequências trocadas.
Porém, há um terceiro erro tão grave quanto os demais.
A ANATEL costuma verificar, ANTES de conceder uma licença de estação repetidora, se não há uma outra repetidora licenciada na mesma frequência num radio de, digamos, 200 quilômetros. A razão é simples: para que não haja interferências entre elas. Caso haja, a ANATEL solicita que seja escolhida outra frequência.
Uma troca entre uma frequência de entrada por uma de saída e vice-versa tem o potencial de causar bastante confusão, pois, conforme mencionado antes, a escolha dessas frequências foi definida a nível internacional. Além disso,
Nos casos em que a tal “Rede” obteve licenciamento irregular, as frequências de entrada e de saída trocadas correspondiam às de uma repetidora existente e licenciada na mesma cidade! O problema é que a ANATEL está concedendo uma licença de repetidora “invertida” que, em caso de mau uso, tem o potencial de inviabilizar a utilização ordeira e normal dos radioamadores que utilizam a repetidora existente (e que tem as frequências licenciadas de acordo com a legislação). Como essas repetidoras “invertidas” operam na mesma frequência (porém invertida) e na mesma cidade que as repetidoras regulares, um operador inescrupuloso tem uma autorização para invadir e/ou monopolizar o uso de uma repetidora que muitas vezes é mantida a duras penas por um grupo de radioamadores abnegados – os MANTENEDORES.
E o mau uso já está acontecendo.
Conflito em Alagoas
Existe um áudio que está circulando nos grupos de radioamadores nas redes sociais que mostra um fato lamentável ocorrido bem recentemente em Alagoas, aonde certa repetidora foi “invadida” por um sistema IVG, o qual está operando licenciado como repetidora “invertida” com as mesmas frequências da repetidora que já existia, só que trocadas. Pasmem: essa estação IVG que agora está conectada à repetidora regular foi instalada, pasmem, À REVELIA E SEM O CONSENTIMENTO DOS MANTENEDORES DA REPETIDORA LICENCIADA REGULARMENTE!
Obviamente isso causou revolta entre os radioamadores, que exigiram a retirada do tal sistema IVG, o que parece que foi feito, ao menos, temporariamente.
Mas observem: já que a licença foi concedida pela ANATEL, não há nada que “obrigue” que o radioamador que colocou no ar o IVG invasor desative seu sistema; ele inclusive já deixou isso claro em conversa particular conosco, quando invocou o princípio de que a repetidora (que ele invadiu) é pública e que ele teria o “direito” de utilizá-la (ou melhor, de invadi-la!…) O que nos leva novamente à questão da ÉTICA que abriu o texto que você está lendo. O radioamador que invoca um “DIREITO” para ter alguma vantagem em relação a outro radioamador desconhece totalmente o significado da ÉTICA que DEVE permear todas as nossas ações.
Problema que se espalha
Além do fato lamentável que está ocorrendo em Alagoas, temos notícia de outros problemas semelhantes em outras partes do país, onde a tal “Rede” está incentivando alguns radioamadores entusiastas das comunicações via internet a implantarem links para retransmitir (notem a palavra: RETRANSMITIR) o sinal da rede em repetidoras locais e regionais sob a justificativa de estarem ocupando as mesmas com rodadas feitas em vários locais do país.
Em que pese a falácia desse argumento, já que ocupar todas as repetidoras e links da rede com um único sinal, com uma única conversa/rodada, de forma mecânica, está mais próximo da formação de uma rede de RADIODIFUSÃO do que algo lícito dentro do Serviço de Radioamador, existe um problema muito mais sério.
Ao ocupar/invadir repetidoras com um sinal vindo da internet, que apresenta elevado “delay” ou atrasos, aliado ao péssimo hábito de não dar o devido espaço de câmbio entre as transmissões e que é agravado pelos “BIPS” de cortesia dos vários links e repetidoras em rede e sem respeitar o “timer” das repetidoras invadidas, o sistema está INVIABILIZANDO e MONOPOLIZANDO o uso destas repetidoras.
Numa situação normal, aonde um radioamador tenta participar de uma rodada e não consegue porque não há espaço de câmbio ou porque a repetidora “desarmou” devido ao seu timer ter estourado, a consequência normalmente não passa de um aborrecimento.
Porém, é preciso lembrar que repetidoras cumprem um papel vital em situações de emergência – e aqui destaco que muitas vezes a emergência não é uma enchente ou um incêndio, mas pode ser, por exemplo, alguém perdido na mata, ou com um pneu furado ou problema mecânico no carro em local ermo. Numa situação dessas, as consequências de não poder pedir ajuda por uma repetidora inacessível por conta da invasão de um IVG podem ser trágicas.
Em suma…
Temos três problemas graves no momento:
1. Uma “Rede” que se espalha mais com objetivo de RADIODIFUSÃO do que como radioamadorismo;
2. A concessão de licenças FLAGRANTEMENTE IRREGULARES, com frequências invertidas, muitas vezes com a utilização de “laranjas”.
3. A invasão/monopólio de repetidoras à revelia da vontade de seus mantenedores.
O problema é grave e exige que os radioamadores tenham consciência dele e esta foi a razão de escrevermos este EDITORIAL. Esperamos que, ao mesmo tempo, a ANATEL possa revisar o procedimento de concessão de licenças de estações repetidoras, atentando-se à atribuição REGULAR das frequências de entrada e de saída e também a distância geográfica mínima para concessão das mesmas em frequências já utilizadas.
Fonte: QTC.ECRA
Excelente editorial ! O mesmo deveria ser mais divulgado, infelizmente a confusão está se alastrando sem nenhum controle das autoridades !